quarta-feira, 12 de junho de 2013

NOS POÇOS


Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê.

O ovo apunhalado - C.F.A

Para lugar algum...

Antes, era como um momento leve, suspenso no ar. Muito leve e suave. Era um quase transbordamento. Era uma brisa leve no rosto, um carinho na cabeça, dedos alisando os cabelos. Antes era um quentinho bom, um cheiro de pele macia. Era um sorriso espontâneo. Era uma vontade realizada e outra vontade e outra realização. Era assim, só que bem mais.

Ela acreditou que estava em um momento onde tudo era visto de forma suave e leve. Era uma imagem lírica, como um filme de cinemascope. Todo movimento era fluido e se estendia pelas horas que se arrastavam entre um instante  e outro, mas que eram tão fortes quanto uma tromba d'água: abrupta. Passaram-se dias , meses, anos.

Hoje é indiferente. É um momento denso, tenso, pesado. É um momento bruto e rascante. É um frio da madrugada, que corta a pele. Um soco no estômago, mãos esganando o pescoço. Hoje é um deserto, um cheiro forte de mofo. Um quarto vazio. Uma casa suja. Hoje é um dia esquecido. Um par de olheiras, um rosto acabado em frente ao espelho. É uma vontade não realizada. Um filho abortado. É um membro amputado. Hoje é uma caixa de antidepressivo. Dois comprimidos de calmante. Um dia inteiro dormindo. Um talho de navalha em cada pulso. Um grito seco, um choro abafado. Uma alma engasgada. Um peito afogado. Uma voz calada. Um monstro radioativo. O apocalipse segundo João. O revés do conto de fadas. Hoje, ela é uma mulher abandonada. 

Hoje acordou com a mesma película nevoada nos olhos e sentia o mesmo cheiro de flores que nunca existiram. Seu corpo recebia toda a luz dos dias de sol e  refletia  raios escarlates. Vermelho todo ele. Neste mesmo dia, toda sua fantasia caiu e o vermelho que coloria o corpo escorreu por sobre o chão, ficou opaco, enxergou sem a névoa e,finalmente, respirou a fragrância de dióxido de carbono das anti-flores do mundo. Seu estômago doeu, Sua boca azedou e sua pele descamou. Olhou seu corpo apocalíptico no espelho. Milagrosamente reconheceu-se. Agradeceu por tudo aquilo, por enxergar antes tarde do que nunca, a sentir o odor da anti-flor e a sentir dor nos ossos fracos. Sorriu vazia. Determinadamente vazia: Ela.